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Um ano cheiroso a patchouli

Patchouli é um maravilhoso arbusto da família da menta, cuja erva é agraciada com delicadas flores brancas, meio rosadas e folhas aromáticas, usadas há séculos na perfumaria, devido ao seu perfume maravilhoso e forte.

Pois bem. Inicialmente eu desejo a todos os leitores desse texto que o ano de 2022 seja simbolizado pelo branco da paz e o rosa do amor provindos das flores do patchouli, que o aroma dessa fragrância harmonize em nós os melhores sentimentos: serenidade, compreensão, solidariedade e amor ao próximo, como foi pra mim o ano de 1988.

Na cultura camponesa preservamos o hábito de desejar uns aos outros um próspero ano novo, e aquele que primeiro expressa essa gentileza tem por direito receber um presente, que poderá ser mutuamente trocado quando o amigo agradece as felicitações e deseja boas festas de Reis. Eu aprendi isso muito cedo, embora, até aquele ano, todas as vezes em que desejei um feliz ano novo o presente nunca apareceu, talvez porque eu apenas expressava esse sentimento entre os meus pares, e criança não tem dinheiro para comprar presente.

Foi por essa razão que pensei em desejar próspero ano novo para o Papaim, meu bisavô. Ele era um senhor de mais de 80 anos de idade, muito sério, sisudo, andava sempre estressado com "a falta de fundamento das gerações atuais", como sempre ressaltava em suas falas. Por conta disso, eu estava confusa se desejava ou não votos de felicidade para ele aquele dia. O meu medo era o de não ser compreendida.

No dia 1º de janeiro de 1988, logo cedo, por volta das 6:00 horas da manhã ele chegou lá em casa para pegar o leite. Agraciar os idosos e crianças com leite de vaca sempre foi um hábito de nossa família. Trouxe para "vizinhar" um pedaço de carne de leitão. Vizinhar é uma expressão que na cultura camponesa significa compartilhar, um costume bastante comum, principalmente quando se abate um animal, produz-se beijus nas farinhadas, ou faz-se chouriço, entre outras gostosuras.

Papaim era supersticioso, lia o almanaque para sugerir o nome dos netos, compreender melhor a relação entre as plantações e fases da lua, saber os dias de eclipse, entre outras curiosidades daquela literatura popular. Por essa razão, afirmava que no primeiro dia do ano devia-se comer carne de leitão, bicho que fuça para frente e jamais comer carne de galinha, animal que cisca para trás, sob pena de não obter prosperidade no resto do ano.

Ele chegou com a garrafa numa mão e a carne na outra. Como de costume eu pedi a benção e ele abençoou: - Deus te dê juízo e prosperidade. Sempre abençoava assim, mas naquele dia a parte que diz "te dê juízo" me soou como um aviso. Eu fiquei confusa se devia ou não desejar para ele votos de feliz ano novo com o objetivo de receber um presente.

Eu corri para o terreiro da casa e fui aguardá-lo lá no caminho. Pensei comigo, se ele mandar eu criar juízo e na sequência afirmar que as crianças de hoje não têm fundamento ficará apenas entre nós dois. De longe avistei ele vindo, caminhando devagar, um pouco curvo devido ao peso da idade, falando baixinho e batendo as mãos nas orelhas, como sempre fazia. Eu temperei a garganta e disse: - Feliz ano novo, Papaim. Ele não ouviu direito ou não quis acreditar e por isso questionou: - O que, menina? Nesse instante meu coração estava quase pulando pela boca, mas não tinha outro jeito, era necessário repetir a frase, e foi então que falei quase gritando: - Boa Festas e Feliz Ano Novo, Papaim! Ele expressou um risinho no canto da boca, como quem não queria acreditar no que estava ouvindo, eu era tão pequena, tão franzina e ao mesmo tempo tão esperta, acho que foi isso que chamou a atenção dele.

Ele me olhou de forma singela, totalmente desarmado daquela carapuça carrancuda que tinha e me disse: - Muito obrigada. Dedico a você boas festas de Reis. Pronto. Aquele era um problema, essa frase proferida por ele significava que devia haver uma troca de presentes. De onde eu tiraria dinheiro pra comprar um presente para o Papaim? Essa foi uma preocupação que me acompanhou por vários dias, até que uma certa manhã eu achei um pequeno frasco de perfume nas coisas da minha mãe. Estava vazio, mas nada me impedia de enchê-lo com um pouco do perfume da família e não passar vergonha diante do Papaim.

Por vários dias encenei a entrega adiantada do presente, mas não tive coragem e cheguei à conclusão de que o melhor era aguardar. Quando eu já estava acreditando que nada aconteceria, e que aquele ano seria frustrante como os outros em relação a ganhar um presente, o Papaim chegou com um embrulho nas mãos, me olhou sorrindo e me entregou dizendo: - este é seu presente de ano novo. Eu recebi feliz, corri para quarto peguei o pequeno frasco de perfume e o entreguei cheia de orgulho e felicidade. O meu coração dizia baixinho: - até que enfim alguém cumpriu realmente com o que manda a tradição.

Aquele foi um ano bom e cheiroso como patchouli. A Rádio Pioneira divulgava todo o processo de redemocratização do Brasil, os locutores anunciavam sobre a elaboração e aprovação da Constituição Federal de 88, falava-se muito em novos tempos, renovavam-se as esperanças de um Brasil melhor para todos. Também foi um ano de inverno bom, em que plantamos a roça e colhemos milho, feijão, arroz e mandioca, suficiente para alimentar a família e os animais.

Todas as tardezinhas eu tomava um banho gostoso, colocava minha roupa limpinha, fazia cachos no cabelo e passava o meu perfume patchouli, e sentia uma sensação maravilhosa e indescritível, harmonizada pelo pôr do sol, o verde da grama, o canto dos pássaros e a calmaria da vida no campo.

É por isso que eu desejo a todos um ano com cheiro de patchouli, que não tenhamos receio de lutar para fortalecer a democracia brasileira, de abraçar, desejar feliz ano novo, trocar presentes, fazer vizinhanças, apoiar verdadeiramente uns aos outros e aproveitar o que a vida nos oferece de melhor.

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