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Foto do escritorraimundinhamelo

O MILAGRE É FILHO DA FÉ

Atualizado: 30 de abr. de 2022


Quando fecho os olhos ainda sinto a leveza de seus dedos tocando em minha garganta, escuto o sussurro baixinho de sua conversa com Deus e inspiro o cheiro dos galhos de arruda usados durante a oração.

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Aquele foi um dia como muitos outros. Ao logo da manhã me dediquei a labuta camponesa de cuidar das plantas, dos animais e ajudar a minha mãe nos afazeres da casa. A tarde fomos lavar roupas no açude da comunidade. Como de costume, levei o anzol e iscas de macaxeira para me arriscar em pegar uns peixes. Essa era uma das atividades mais gostosas da minha infância.


Tardezinha, o sol vermelho se pondo no horizonte, uma brisa leve, cheirosa e umedecida pela água açude tornava aquele cenário um ambiente perfeito para uma boa pescaria. Consegui pescar quatro peixes pequenos, garantindo a mistura para o jantar.


De volta pra casa só conseguia pensar no caldo de peixe fresco, cozido com muitas verduras e ovo de galinha caipira. De tanto insistir a mamãe resolveu atender ao meu pedido e preparou o prato. Mas na verdade, fome de criança é uma coisa que não combina com peixe miúdo e foi por isso que logo nos primeiros bocados percebi que estava engasgada com uma espinha de peixe.


Os olhos lacrimejando, a garganta doendo, tanto pelo engasgo como também por tentar retirar a espinha sem sucesso; aquelas alturas todos já haviam interrompido o jantar e tentávamos mil e uma coisas para resolver o problema. Em meio a tanto desespero olhei meu pai e apelei: - me leve na casa da Madrinha? Se ela rezar eu sei que dará certo. Ele me olhou com olhos sensíveis e amorosos, cuja profundidade me amolecem o coração e disse: - vamos.


Saímos numa noite escura e fria em que só conseguíamos ouvir os grilos e as corujas que cantavam na mata escura, eu estava com um pouco de medo, e quase correndo tentava apressar os passos para alcançá-lo. Mesmo com medo do escuro e de assombração, eu só conseguia pensar em resolver o problema da espinha presa em minha garganta.


- Bença, Madrinha, eu disse com dificuldade olhando para minha avó. Meus olhos estavam mergulhados em lágrimas e o choro entalado. Para obter o seu acolhimento em momento de desespero era preciso pouca coisa ou quase nada, ela sabia como ninguém ser conforto e luz nessas horas angustiantes. Como de costume, carinhosamente e preocupada ela disse: Deus te abençoe, e perguntou: - o que houve? por que você está chorando? Eu não consegui falar, mas meu pai explicou tudo.


Com um galho de arruda e todos os rituais de benzimento ela iniciou a oração. Ainda lembro algumas palavras sussurradas baixinho por ela, enquanto tocava em minha garganta e passava o galhos de arruda de um lado para outro. “Por intercessão de São Brás, Bispo e Mártir, livre-te Deus do mal da garganta e de qualquer outra doença”.


Milagrosamente senti minha garganta adormecendo e ao final da reza eu já não sentia mais o engasgo, bem como o incômodo provocado pela espinha de peixe, mas sabia que não havia engolido ou colocado para fora.


Albert Einstein dizia que só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivendo-a como se os milagres não existissem. A segunda é vivendo-a como se tudo fosse milagre, eu, particularmente me guio pela segunda opção, pois como Guimarães Rosa creio que, “com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possí­vel, o mundo se resolve”.


Quando terminou a oração ela serviu um famoso ki suco de abacaxi, algo indescritível, incomparável, cujo sabor me causa uma enorme saudade que trava meu peito e faz doer o meu coração. Ela era uma mulher de muita fé, uma fortaleza repleta de amor, carinho e acolhimento.


Problema resolvido, voltamos para casa e a vida continuou com a mesma rotina e calmaria maravilhosa de sempre. Quinze dias depois, senti um leve incômodo na garganta, como se a espinha de peixe estivesse saindo. Corri para o espelho, abri a boca e consegui puxá-la com uma pinça.


Os milagres não são explicáveis a luz daqueles que não creem no valor e nos mistérios que envolvem a espiritualidade humana. Eles simplesmente acontecem. É como diz Erich Remarque: “No desespero e no perigo, as pessoas aprendem a acreditar no milagre. De outra forma não sobreviveriam”.


Em seus últimos dias de vida, nos momentos de dores e agonias, por inúmeras vezes rezei em minha avó. Eu sabia que havia pouco a ser feito, mas pedia desesperadamente que Deus não a deixasse sofrer. Em uma dessas ocasiões ela percebeu que eu estava rezando e juntas relembramos o dia daquele milagre, do seu socorro no momento de minha angústia.


Fecho os olhos para milagrosamente sentir o toque de seus dedos, de suas mãos, seu abraço, seu cheiro, seu carinho. Queria demais sentir o galho de arruda de sua oração, ouvir suas palavras de conforto e apoio, principalmente nos dias que mesmo sendo fraca eu preciso ser forte.

Raimunda Alves Melo

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