As discussões que tratam sobre a importância do brincar como uma das principais formas de garantir o desenvolvimento e aprendizagem das crianças e respeitar suas culturas não são recentes, iniciaram no Século XVIII e ganharam força nos Séculos XX e XXI.
Essa foi sem dúvida uma das principais conquistas da contemporaneidade, o reconhecimento das crianças como sujeitos históricos e de direitos, pessoas que encontra-se vivendo uma das fases mais marcantes da vida, caracterizada pelas descobertas, pela riqueza da imaginação e do faz de conta, tendo as brincadeiras como uma das principais formas de interação, exploração e conhecimento do mundo.
No campo, o brincar contempla singularidades incríveis, que envolvem a estreita relação com os elementos da natureza, a aprendizagem da cultura e a busca pela sobrevivência. É nesse contexto imaginário e real ao mesmo tempo, que as crianças aprendem a se expressar, a nadar, pescar, caçar, cultivar a terra, cozinhar, criar animais.
Como disse Vygotsky, ao brincar, a criança assume papéis e aceita as regras próprias da brincadeira, executando, imaginariamente, tarefas para as quais ainda não está apta ou não sente como agradáveis na realidade.
O brincar das crianças camponesas se estende nas quatro estações do ano, explorando o que cada uma tem de melhor, aprendendo por meio do brincar e das brincadeiras a usufruir do ser criança, a se desenvolver e sobreviver nos momentos de fartura, alegria, mas também nas adversidades de cada tempo.
Com o propósito de ilustrar as concepções supracitadas, descrevo algumas memórias do brincar de pequenos camponeses na década de 80, enfatizando a relação dessas experiências com os elementos da natureza.
O cair das primeiras chuvas lava a tristeza dos povos do campo, principalmente os vivem no Semiárido, região seca e quente, onde precisa-se da chuva para molhar a terra e tirar dela o sustento da família.
As crianças compreendem perfeitamente esta relação, de modo que, a hora da chuva é também um momento de comemoração e euforia. Quem nunca tomou banho de chuva correndo sobre a lama do terreiro, chuverada de goteira ou brincou de construir barragens pra ver a força da água derrubando as suas paredes perdeu quase metade da infância.
Mas a riqueza das brincadeiras de inverno não param por aí. Também é possível tomar banho de rio, aprender a nadar nos poços de água e lama, brincar de pega-pega nas águas das lagoas, pescar piaba nos riachos de água doce e depois fritá-las com ovo de galinha e farinha de mandioca. Espetacular.
Brincar de fazer rocinha de milho e feijão e acompanhar o nascimento das plantas, ser cabeleireira das bonecas de milho verde, fazer casinhas de areia molhada e pegar tanajura ao final da tarde de inverno ao som da velha e mágica canção que diz: - "cai, cai tanajura que eu te dou uma rapadura".
Na primavera é possível vender flores, frutos, organizar feiras, ser atendente de supermercado, abrir um restaurante fictício ou mesmo se arriscar como cozinheira das primeiras comidinhas.
Nas noites frias do outono brincar de roda, de guerrô, de esconde-esconde, de fazer fogueira para assar milho ou batata, brincar de cai no poço, de recitar loa, de fazer experiências nas noites de lua cheia.
Nos dias juninos brincar de quadrilha, cavalo piancó, passar fogo e virar comadre ou compadre, brincar de passar o anel e ouvir as histórias de assombração e lobisomem. Também é possível participar das disputas pra ver quem consegue pegar mais frutas nas árvores. Por falar nisso, brincar de polícia e ladrão em suas galhas é algo maravilhoso.
O verão também apresenta inúmeras possibilidades de brincadeiras, como soltar pipa, correr no meio do vento, assobiar chamando o redemoinho, brincar de ser vaqueiro e tanger o gado, andar de cavalo ou de jumento, caçar fruta do mato, brincar de casinha, jogar bola no fim de tarde.
O interessante é que, na maioria das vezes, o brincar tem início com a produção dos brinquedos: bonequinha de milho verde, carrinho de lata de sardinha, cavalinhos de talos de carnaúba, caixas, latas e pedaços de madeiras se transformam em brinquedos variados, todos construídos a partir da criatividade das pequeninas mãos das crianças.
O tempo passou e o desenvolvimento da tecnologia e das comunicações vêm descaracterizando o brincar e as brincadeiras das crianças camponesas. O meu desejo é que as famílias saibam valorizar as mudanças, mas também saibam reconhecer o valor da tradição e a importância do brincar como elemento de exploração da natureza, experimentação das diferentes linguagens, aprendizagem da cultura e das formas de sobrevivência.
Por fim, só me resta recitar os versos do Poeta Cassimiro de Abreu:
Ai que saudade eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais.
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