Na obra de Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida, um dos momentos mais emocionantes é a intersecção de Nossa Senhora junto ao seu filho Jesus Cristo para que Ele perdoe os pecados do esperto João Grilo. Ela afirma: - João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.
Esta cena me faz lembrar um dos períodos mais difíceis de minha infância, quando a escassez de comida me fazia agir com a esperteza de João Grilo.
Todos os dias por volta das 14:00 horas, Dona Maria, codnome adotado por mim para manter o anonimato da pessoa, iniciava a sua atividade diária de assar bolos fritos no azeite de coco babaçu.
Com as mãos caprichosas e habilidosas temperava a fécula de mandioca com leite, ovo e sal e enrolava a massa. Na sequência assava os bolos no azeite quente e colocava tudo em uma grande bacia de alumínio, bem ariada e brilhante.
Depois de frios, colocava os bolos sequinhos e deliciosos em um cambo de quatro, amarrados com uma embira feita de folhas de carnaúba bem limpinhas.
Eu lembro de cada detalhe, pois aquela era uma das coisas que mais mexiam com a minha imaginação infantil.
Quando o cheiro dos bolos exalava pelas ruas estreitas da cidade pequena, São Miguel do Tapuio, eu começava a imaginar o que fazer para comprar ou ganhar um cambo de bolo frito.
Aquela situação envolvia um misto de fome, desejo e gula de criança em fase de crescimento, coisa semelhante ao que ocorre com mulheres grávidas quando encafifam na cabeça que precisam comer alguma coisa.
Eu precisava apenas de algumas moedas, coisa rara para uma criança pobre que vivia no ano de 1983, época em que ocorreu uma das mais desastrosas secas do Nordeste, ocasionando pobreza e fome entre a população mais vulnerável.
Naquela ocasião, a casa de minha avó ficava por trás do muro do cemitério e eu, com apenas 6 anos de idade, brincando naquelas redondezas percebi que perto do muro, ao lado de alguns túmulos existiam vários pés de tomates, cujos frutos já estavam maduros e bem vermelhinhos.
Ninguém queria comer aqueles tomates, embora parecessem deliciosos, entendiam que eram impróprios para o consumo humano. Eu também não queria e tinha receio em comê-los para saciar a fome.
Dona Maria Antônia vivia tão entretida com as labutas da casa e fazendo bolos fritos para vender na feira que não tinha tempo para ir ao cemitério visitar o túmulo dos parentes falecidos e perceber a plantação de tomates que havia naquele lugar esquisito.
Com o desejo de comer os bolos eu pulava o muro do cemitério, recolhia os tomates maduros e suculentos, arrumava tudo em bacia e ia na casa daquela Senhora, justamente quando a mesma estava fritando os bolinhos de fécula de mandioca.
Ela recebia os tomates com alegria e gratidão e nem ao menos se permitia perguntar sobre a origem dos frutos tão fartos.
Me olhava com olhos graciosos e admirados e dizia: - “A netinha de Dona Creuza é uma menina muito esperta e esforçada".
Eu apenas acenava a cabeça confirmando a afirmação. Recebia um cambo de bolo frito, que era uma demonstração de gratidão de Dona Maria. Com alegria e entusiasmo saciava minha fome com o produto de uma mentira ou uma omissão, uma pequena esperteza praticada por uma criança que apenas queria comer bolos fritos nas tardes de uma pacata cidade do interior do Piauí.
As palavras da personagem interpretada pela famosa atriz brasileira Fernanda Monte Negro, que brilhantemente representa a Mãe de Jesus no filme citado, hoje, trazem um pouco de calmaria para minha consciência adulta, ao tempo que me fazem refletir sobre as espertezas de Joãos, Marias, Josés e Raimundas, que desejam tão pouco num mundo de injustiças e desigualdades sociais que quase nada tem a oferecer aos mais pobres.
Raimunda Alves Melo
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