Uma das frases mais célebres do educador Paulo Freire, e que me inspira bastante, diz: “Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso. Amo as gentes e amo o mundo”.
Freire compreende que o ato de educar implica necessariamente em reconhecer o outro como sujeito e não objeto, para ele a “educação é um ato de amor”, sendo que “não há diálogo [...] se não há um profundo amor pelo mundo e pelas pessoas”.
Assim como eu tenho certeza que vocês guardam muitas lembranças de suas trajetórias como estudantes, algumas boas e outras ruins, certamente, essas últimas são marcadas por momentos de tristeza, humilhação, falta de acolhimento, autoritarismo e medo.
As boas lembranças se caracterizam por momentos de acolhimento, afetividade, comprometimento e rigorosidade, sim, pois como diz Freire “o professor não precisa abrir mão da rigorosidade para ter amorosidade”, uma vez que, “não há vida sem correção, sem retificação”, ela é muito importante para o amadurecimento pessoal e crescimento intelectual.
A reflexão que fazemos sobre esse tema é: como pretendemos ser lembrados enquanto profissionais? Pelas lembranças recheadas de amorosidade e gratidão ou pelas feridas que abrimos no coração das pessoas?
Ao longo de minha trajetória estudantil tive a oportunidade de conhecer vários perfis docentes. Tenho gratidão por todos os professores e professoras que tive, seja pelos ensinamentos planejados, sistematizados e pelo exemplo como pessoas humanas e profissionais exemplares que são ou que foram, influenciando positivamente na minha formação, seja pelas lições determinadas através de comportamentos involuntários, autoritários e violentos que me fazem repudiar esses gestos e me policiar como pessoa e como profissional, pois como Freire creio que: “todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje [...]. Temos de saber o que fomos, para saber o que seremos”.
Uma das lembranças mais bonitas que tenho são as de um fato que ocorreu na segunda série do primário, hoje segundo ano do Ensino Fundamental.
Naquele dia, a professora chegou mais cedo. Como de costume colocou os livros e os cadernos sobre a mesa. Percebi que no meio de suas coisas havia um pacote embrulhado com papel de presente, fato que chamou a minha atenção.
Após a chamada e a organização da rotina da aula, ela, discretamente, me chamou em sua mesa, eu me aproximei um pouco desconfiada e ela sussurrou em meu ouvido: - "este presente é para você, Raimundinha".
É como diz Paulo Freire: “Educar é impregnar de sentido o que fazemos a cada instante!” E naquele instante, o meu coração se encheu de alegria e satisfação, não apenas pelo presente, mas principalmente pelo seu sentimento, a sua atenção e preocupação comigo.
Indiscutivelmente, em meio a tantas dificuldades e frustações, aquele foi um dia muito bom e até hoje sinto saudade da emoção que senti, um sentimento bom de proteção e acolhimento.
Recebi o pacote, agradeci e voltei para a minha carteira. Desembrulhei e vi que se tratava de um kit de material escolar, contendo cadernos, lápis, canetas e borrachas. Novamente fiquei emocionada. A professora havia percebido que, desde alguns dias atrás, eu estava escrevendo em um caderno improvisado, construído a partir de folhas resultantes de fax recebidos pela Rede Ferroviária Federal – REFESA, doados por uma amiga de classe. Eu recebia, cortava, montava e costurava o caderno na máquina de costura de Tia Iva. Aquele foi apenas um dos inúmeros gestos de afetividade e responsabilidade social da Professora Guardalupe.
Em silêncio eu passei a admirar ainda mais a sua beleza, uma boniteza física, mas principalmente interior, manifestada através de gestos simples, mas capazes de produzir os mais profundos dos sentimentos: o amor, a bondade, a solidariedade, a admiração.
Como afirma Freire, “[...] Ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria” e hoje, mais do que naquele dia eu percebo que Dona Guardalupe era, e ainda é uma professora muito bonita, pois é uma pessoa amorosa.
A partir daquele episódio passei a me preocupar ainda mais com meu desempenho nas avaliações, com o zelo na produção das tarefas, com o meu comportamento. Sabia que alguém estava prestando atenção em mim e me queria bem.
É Dona Guardalupe, Freire afirma que: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. O seu trabalho como professora contribuiu para transformar a minha realidade e através dessa mudança eu procuro ser parte da mudança da vida de outras pessoas, pois desejo ser uma
boa lembrança na memória de meus alunos.
Dona Guardalupe foi e sempre será uma das maiores fontes de inspiração para o exercício da minha docência, uma profissão que deve ser desenvolvida com amor e responsabilidade, pois como afirma Paulo Freire, ninguém nasce feito, é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos e amar é, acima de tudo, um ato de coragem.
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