Só quem é sertanejo sente na pele o quanto é difícil enfrentar as mazelas de uma seca, principalmente quando se vive em uma região pobre como o semiárido piauiense.
O sol escaldante destrói provisoriamente as plantas, seca os rios e riachos e corrói aos poucos a alegria das pessoas que vivem no campo e retiram da terra o próprio sustento.
Pasto seco, reservatórios de água apenas com lama ou barro seco e rachado, vento quente que levanta a poeira fina, arrepiando cabelos e anunciando os difíceis dias que virão pela frente.
Nessas circunstâncias, as crianças ficam com o coração angustiado ao perceberem os olhos tristes e preocupados de seus pais, os cabritos e as vaquinhas berrando com fome e sede.
Os tristes detalhes da cena em questão, parecem narrativas de filmes sobre a seca no Nordeste, contudo são casos reais que ocorrem em anos de estiagem nas mais variadas regiões do semiárido brasileiro; ela ilustra também retratos da minha infância na década de 80.
Naquelas adversidades, causadas pelos longos períodos de estiagem, para não cair em desespero e sobreviver rezávamos o terço diariamente, fazíamos novenas, procissões, romarias e até o roubo de imagens de santos. A recomendação era não roubar a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois essa atitude insensata podia causar tempestades e até mesmo dilúvios.
Sol escaldante, vento seco, plantas e animais morrendo, rezas e penitências pra todo lado e nada de chuva. Até que um dia vi meu pai chorando, tentando levantar uma vaca que de tanta fraqueza e fome já não conseguia mais ficar de pé.
Pronto. Essa foi a gota d'água ou a falta dela. Que venha uma tempestade ou mesmo um dilúvio, pensei comigo numa crise de desespero, revolta e choro engasgado. Coisas causadas pelo sofrimento prolongado e desespero angustiante.
Coloquei os chinelos nos pés e ao sol do meio dia, tórrido e com poeira nos olhos eu saí de casa decidida a cometer um dos piores pecados daquela época: roubar a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo de Mãezinha (como chamávamos nossa bisavó).
- Bença Mãezinha, hoje vim varrer sua casa. Tá bom, Raimundinha. Ao adentrar o quarto dela, abri o oratório de santos e peguei a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado numa cruz. Em seguida, abandonei a vassoura, pulei a janela e desesperadamente fugi pelo quintal.
Essa foi uma das situações mais angustiantes de minha vida. Por um lado, a minha fé dizia que era necessário uma atitude drástica para pôr um fim ao sofrimento causado pela seca que fazia meu pai chorar, a água secar e o povo passar fome. Por outro, parece que eu estava sendo perseguida por todos os lados, como uma criminosa capaz de desrespeitar uma norma muito recomendada pelas pessoas idosas.
No entanto, não havia mais nada a ser feito, era necessário enfrentar as consequências. Ao chegar em casa, esbaforida, cansada, acuada, guardei a imagem na minha pequena mala de couro e comecei a rezar, estava realmente muito preocupada e angustiada.
A essas alturas, Tia Josefina, que morava na casa de minha bisavó já havia percebido a peripécia, procurou minha mãe e insistentemente elas tentaram me convencer a confessar o meu deslize de conduta.
Que angústia, que dor, que preocupação. Eu já tinha até esquecido a seca, o maior problema agora era resolver aquela situação, confessar o crime, devolver o santo, e assumir as consequências daquela atitude cometida em um momento de desespero.
A noite chegou. O céu ficou turvo de nuvens escuras e carregadas. Um vento forte e frio batia na janela do meu quarto, trovejava muito e relampejava. Com o coração acelerado, eu pensava: a seca acabou, mas agora é necessário sobreviver a tempestade e ao dilúvio. Peguei a imagem no fundo da mala, abracei com muita fé, agradeci a chuva, pedi perdão pelo gesto impensado e pedi uma segunda chance a Jesus Cristo.
Acordei no outro dia. Na verdade, havia chovido pouco, mas meu pai estava feliz novamente. Contei sobre o que eu tinha feito, chorei, demonstrei arrependimento, fui aconselhada e perdoada.
Na devolução da imagem do santo, como de costume, fizemos uma procissão e um terço. Dias depois, o inverno chegou, a caatinga floresceu, os riachos e rios acumularam água novamente, o pasto nasceu e com ele a minha fé resplandeceu.
Hoje, as secas da vida são outras, olhos lacrimejam pelas perdas causadas pelo coronavírus. Desesperadamente, eu rogo a Deus para que aumente a nossa fé, para que tenhámos força, determinação e perseverança para enfrentar esse enorme desafio que desola a vida de todos nós.
Sinto saudade da criança que fui um dia, corajosa, capaz de quebrar barreiras e desafiar a própria fé na luta pela sobrevivência. Abraço Jesus em pensamentos, faço a minha parte e entrego e confio nas mãos Dele aquilo que não posso resolver.
Raimunda Alves Melo
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